O resguardo que não houve
Eu sentia necessidade emocional do resguardo, não pelos motivos
antiquados de antanho, mas para acomodar a alma a todas as alterações.
Uma espécie de fase mamífera de reconhecimento da cria que acaba de
chegar; uma espécie de estado intermediário, no qual todos os outros
membros da família possam se acostumar ao recém-nascido. Um tipo de
estágio interfásico, entre todas as exigências do final de gravidez e
do parto, e as imposições da "vida normal"; um momento muito íntimo,
muito próprio, de meditação, recolhimento, adequação.
Infelizmente eu não tive isso, das duas vezes. Da primeira, hhouve
as pressões de uma UTI, as intromissões que não acabavam mais, o inferno
diário de tentativas de imposições de gente, situações e coisas que
nunca pedi. Enfim, agressão total.
Hoje, com quase dois anos de distância, acho que posso dizer que
poucas vezes me senti tão agredida, invadida, humilhada e sozinha quanto
no meu resguardo.
Eu não me adaptei ao Estêvão; eu me agarrei a ele, quase que
literalmente para não sair jogando coisas nas outras pessoas.
Dessa vez foi diferente. Eu tinha cortado alguns "laços daninhos",
e, de uma forma geral, isso me fez bem. Mas a vida simplesmente não
podia ficar parada, enquanto eu cheirava a cria, enquanto eu desejava
que os dias passassem mais devagar.
Com cerca de dez dias de parida, eu tive que reassumir minhas
obrigações, as quais incluíam, por exemplo, sair de casa.
Foi um recomeço infinitamente menos agressivo, menos traumático e,
até, mais natural. Entretanto lembro que estava com Mariles em uma fila
e alguém perguntou a idade dela e, ao receber a resposta de dias,
despejou: nossa, como vocÊ tem coragem!!!! E eu respondi: não é coragem,
é necessidade. E a conversa parou por aí.
É muito raro as coisas serem como a gente quer. Penso que o
importante seja fazer tudo que esteja a nosso alcance e aceitar o que
vem e aprender com o"o que não veio".
Agora Mariles já tem seis meses. Embora "fora do tempo", temos essas
"vivências de encaixar / encontrar". É quando toda a família fica na
cama, em uma manhã de domingo, apenas sentindo uns aos outros e rindo,
sem desejar mais que vivenciar aquele instante; é quando nos sentamos
todos no chão, brincando com pecinhas, palavras, músicas, macinhas de
modelar.
Enfim, às vezes a própria vida nos oferece mecanismos de
compensação.
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