Parto - vida - morte
Quando pensamos no parto, obrigatoriamente falamos em vida: na vida
da mãe que muda, na vida do bebê que começa, na vida de todos os
envolvidos - variáveis convergindo para um único ponto, tocando-se
para depois separar-se ou entrelaçar-se, numa ciranda imprevisível e
infinitamente mutável.
Parto é vida, e vida, inevitavelmente, é morte ou, na melhor das
hipóteses, ciclo, transformação. Mas a morte em maiúsculas pode ser uma
convidada do parto. Do seu parto. Do meu parto. E não em um sentido
figurado. Ponhamos as coisas: o bebê que você espera pode não
sobreviver. Claro que ninguém quer isso. Claro que todo o mundo faz tudo
o que pode para evitar. Mas todas as garantias não dão a certeza
absoluta. Complicações de última hora, afecções insuspeitáveis,
dificuldades intransponíveis.. A luta pela vida no parto pode ser
arrebatada pela morte da mãe ou do bebê...
Estive honestamente pensando em como equacionar isso. Em como
equacionar a única escolha de parto confortável para mim com a hipótese
de terminar em morte. Como exorcisar a culpa, a culpa intangível e
destrutora, dando-lhe a atenção indispensável para que seja elaborada e
sendo, a um só tempo, responsável e indiferente, sob pena de que ela me
devore?
Bebês são frágeis, podem não resistir. Podem vir só para aquele
instante, instante pequenininho e infinito, instante prenhe, tão ou mais
que a própria prenhez que o erigiu. Eu não posso querer saber tudo sobre
vida ou morte. Só posso confiar, afinal. Confiar que meu instinto do que
é melhor para nós seja melhor para minha filha. Confiar que o possível
seja suficiente - não é o que toda mãe que vai ao hospital faz? - e que
a vida dos nossos filhos, em última instância, não nos pertence. Nós a
nutrimos e enriquecemos, mas nossos filhos são nossos assim como as
flores são da terra. Elas estão nela, fortalecem-se nela, nutrem-se
dela, apóiam-se nela, mas pertencem sobretudo à natureza, para a qual a
terra é um instrumento em suas mãos invisíveis. Instrumento que ela
dedilha, usa para fazer soar a harmonia da vida... mas a Natureza
embora esteja na terra, não é a terra em si, ainda que se exprece através
dela.
Meu ventre é a terra em que a semente da minha flor menina germina.
Ali ela faz seu ninho. Eu, como mulher-terra, dou-lhe condições de
germinar dentro de mim. Ventre areia, terra mulher, flor embrião, feto,
afeto, bebê, menininha...
Mamífera por excelência, uso meus instintos para farejar o melhor
ninho para minha flor-estrela. Farejo, sinto, conecto-me a mim. Procuro
a segurança e o conforto para parir, e é só isso que posso fazer. Como a
terra não pode proteger a flor das intempéries dos insetos, dos ventos,
das chuvas, eu não posso proteger minha filha de todas as variáveis
imprevisíveis. E como a terra entrega à natureza a sobrevivência de sua
flor, trocando o posto de superpoderosa para o de serva fiel e humilde,
assim eu faço em relação a minha flor filha. Entrego-a terna e
humildemente à vida, e confio, sobretudo, em que o melhor para nós
aconteça, mesmo que eu não entenda.
E se eu não posso, como terra, como mãe, prever todas as variáveis e
protegê-la de tudo, posso amá-la sobremaneira e envolvê-la com o melhor
de mim.E é assim que a flor retorna à sua condição inicial de flor
estrela, e flor-estrela também é borboleta, amante das flores e membro
do céu. Assim que sua opção de nascimento se entrelaça ao seu nome, e
com ele vive, desde o primeiro segundo de vida, o temor e a glória de
ser um ser da terra, mas também pertencer ao céu.
Minha filha não é *minha* filha. Ela vem por mim e por ela eu sou
responsável, mas sobretudo pertence à vida. A ela eu me entrego e
entrego o que houver de melhor em minha própria essência. Nela tento
incutir meus valores e minhas esperanças, sem fazer dela um espelho, nem
de mim mesma, nem constrangida a refletir meus desejos... Mesmo meu
desejo de que ela possa, efetivamente, trilhar de mãos dadas esse
caminho comigo.
Assim que, ao me preparar para o parto de Mariles, eu me preparo
para o parto de Mariles. Cubro as variáveis previsíveis. Cuido para que
não lhe falte nada, e entrego-a à vida, ainda que, até o fim, esteja de
joelhos a seus pés, com seu coração entre as mãos.
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