Frase

"A noção do dever bem cumprido,ainda que todos os homens permaneçam contra nós, é uma luz firme para o dia e abençoado
travesseiro para a noite."
(Os Mensageiros)


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terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Ousadia sem limites

Meu mundo caiu quando eu soube que seria mãe de menina. Descobrir a
gênese desse pavor quase me submergiu, ao tempo em que tentava lidar com
mais uma gravidez exigente e com a tarefa de não prejudicar o andamento
das coisas ao meu redor com as minhas introspecções. A verdade é que é
mais ou menos óbvia a violência imposta aos meninos em nossa sociedade,
e é, portanto, mais fácil preservá-los dela. Dizer "não" aos brinquedos
que estimulem a agressividade, aos filmes violentistas, às ideologias
que não resistem a qualquer argumentação mais viril de que um homem não
pode ser sensível e ser masculino. Dizer "não" a exaltação da força
bruta sobre os valores éticos, às vantagens do grito sobre o diálogo.
Entretanto, no universo feminino tudo é muito mais sutil e pernicioso: o
violento é doce; a agressão é sutil, multifacetada, com cara de
liberdade, modernidade e tons de rosa. Os protótipos de beleza são
cadeias que limitam e aprisionam; a moda são regras que despem-nos da
originalidade e do direito de sermos únicas; a liberdade sexual é um
conceito que, no final das contas, rebaixa-nos a materiais
pornográficos; os brinquedos não incitam à violência direta, mas
engessam nossos raciocínios em posturas que nos condenam ao papel de
repetidoras, não de pensadoras, portanto sempre coadjuvantes, não
escritoras de nossos próprio destino. Entre tanta atenção reservada a
ser popular, bonita e moderna, sobra pouco espaço para a descoberta de
nosso próprio eu, da nossa própria feminilidade e de nossas próprias
preferências. Somos treinadas para sermos massa, não para sermos
autônomas e responsáveis. E o preço cobrado pela ousadia de ser
diferente muitas vezes é mais caro para as meninas que para os meninos.
No universo masculino, tudo é mais ou menos óbvio: o brinquedo atira,
bater é evidente. Você o ensina a desvalorizar a mulher se o manda
engolir o choro porque é "coisa de bichinha" (ensina-o a desvalorizar a
mulher e a negar os próprios sentimentos, de uma vez só); no universo
feminino, não. Tudo é mais indireto, delicado e, talvez por isso, mais
daninho. O belo nem sempre é seguro e os contornos perdem mais
facilmente a justa dimensão. Penso nesse serzinho que cresce dentro de
mim dia após dia. Passei do susto ao medo, do medo à pena e da pena à
ação: eis o que pretendo dizer a minha filha de diferentes formas, desde
o dia do seu nascimento até o de minha morte: Seja ousada, minha filha.
Ousadia sem limite. Que você seja mulher bastante para aceitar como
únicas bússolas um sistema concreto de ética, o amor e o respeito a si
mesma e a toda e qualquer coisa viva que tenha diante dos olhos. Fazendo
assim vai sofrer? Ah, sim, sem dúvida. Mas ao menos terá o orgulho de
dizer que sofreu por aquilo em que acreditava. No mais, meu amor, ouse.
Ouse sem limites. OUse entrar dentro de si mesma e descobrir seus
próprios sonhos! Ouse abrir mão de "tudo", para viver o essencial. Ouse
sofrer com qualidade e amar com valentia. OUse escolher quando, como e
com quem ter relações, e ouse fazer amor no sentido mais ousado da
expressão, que é o de construir e reconstruir o sentimento na ternura e
na fogueira do dia-a-dia. Nesse mundo em que a violência veste os trajes
da modernidade e em que a ética é rebaixada a posição mais subalterna,
tenha a coragem de mostrar que amar é mais que urgente e que a lucidez
da mente compensa qualquer espécie de preço. Ouse descobrir que a paz de
consciência é mais importante que qualquer aprovação externa e que o
amor que flui de dentro para fora não conhece regras nem limites, exceto
os ditados pelas estrelas. OUse olhar as estrelas, colocar flores nos
cabelos, lambusar-se de terra, ter força na fraqueza e doçura em plena
luta. Ouse investir na beleza indiscutível - aquela que flui de dentro
para fora e que se impõe porque contagia. Ouse ser a melhor pessoa que
você puder ser, dia após dia, minuto a minuto, sem se importar se os
outros estão percebendo sua performance. Ouse ter a aceitação como uma
dádiva, não como uma condição para amar realmente e fazer o que precisar
ser feito. Só assim, meu amor, você penetrará verdadeiramente no vulcão
e na doçura se ser mulher.

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